sábado, 5 de fevereiro de 2011

A boneca.

Eram três. Não sei o que viram em mim que as deixaram com aquele sorriso nos rostos, mas o que vi nelas certamente dá pra se tentar explicar. Enquanto eu esperava, cansada, minha carona, elas esperavam a mãe, que trabalhava no mesmo lugar que eu. Brincavam, pulavam e volta e meia uma delas olhava pra mim, sorria - com os lábios, com os olhos - e segurava a expressão até que eu retribuísse o gesto, o que fazia aumentar o brilho em sua face. Era a mais velha. Apesar de, julgando pela idade, ela não ter a inocência que a pequena de cachos caramelo tinha, parecia ter uma doçura maior que qualquer ingenuidade. Ao se voltar pra mim, ao exibir os dentes e ao me observar, parecia que ela tinha algo à apreciar. Deduzi. Aqueles olhos pequenos admiravam a casca, a pele. Mal sabia o que se escondia embaixo de tudo o que via. O salto alto, pra camuflar os calos, gerados pelas quedas e rasteiras; a maquiagem forte, disposta a cobrir com um batom vermelho os lábios que tinham preguiça de sorrir. Esmalte, cor e tom numa alma acinzentada. Uma alma no meio de centenas, que corria pra não perder o trem, pra não perder o horário, pra não perder o salto. Uma alma no meio de centenas que não fazia esforço pra se destacar, não procurava viver, afim de pelo menos, sobreviver.
A mãe das meninas demorou pra chegar, assim como o meu transporte e isso quase me deixou aborrecida. Digo quase porque o sentimento não se concretizou, ao vê-las, mais uma vez, olhando pra mim e admirando tanto, tanto, aquilo que o salto agulha sustentava. Olha, crianças, se quiserem, podem ficar aí pra sempre, mas não me olhem assim. Aqui é só uma capa, sabiam? Isso acaba. Vocês nem podem imaginar que aqui, embaixo de tudo isso existe uma criança medrosa, insegura e boba. Vocês nem imaginam, que aqui só tem um pedaço de gente grande querendo ser levada pra casa no banco de trás do carro e fazendo birra pra colocar o cinto. Vocês, pequenas, nem sonham, que o monstro do armário cresce junto com vocês. Olha, não queiram crescer. O que acham de liberar esses pedaços de sol, por mais tempo pra mim, enquanto a lua cuida do céu? O que acham de não crescerem nunca? Não? Querem ser iguais à mim? Assim, com meio mundo de problemas? É? Certeza?
Tiraram o olhar de mim e seus rostos se encheram de luz e alegria, quando viram a mãe, depois da longa espera correndo pra abraçá-las. Em meio à abraços, sorrisos e atualizações das notícias do dia surgiu a proposta que as garotas esperavam: quem chegar primeiro na sorveteria, toma quantas bolas de sorvete  quiser!
E naquele momento eu desejava me livrar do salto e lembrar do quanto era delicioso me lambuzar. Desejava correr e gritar: eu vou tomar o maior sorvete! Calda de morango, cabelo voando e felicidade. Naquele momento eu queria ser criança. Mas me dei por satisfeita quando uma delas, no meio da euforia, virou-se e acenou pra mim. "Tchau, moça do olho bonito, próxima semana a gente vem pegar mamãe de novo, aí você me diz o seu nome, pra eu colocar na minha boneca nova. O meu é Gabi."
Tchau, Gabi.
Sorri.

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